O concreto da usina nuclear de Angra 3 já testemunhou governos surgirem e caírem, moedas serem criadas e depois derreterem, além de um sem-número de crises políticas. Mas nunca viu um reator funcionar ali.
A usina, planejada ainda na ditadura militar, é hoje uma das obras mais controversas do Brasil. Depois de quase quatro décadas de avanços e recuos, a decisão sobre concluí-la ou abandoná-la segue pendente — um ime que consome centenas de milhões de reais por ano, paralisa investimentos e escancara os dilemas do setor elétrico nacional.
Como definiu Leonam Guimarães, ex-presidente da Eletronuclear, “Angra 3 transformou-se em um ‘projeto zumbi’: não está morto, mas tampouco vive.”
A história de um atraso permanente
O programa nuclear brasileiro começou na década de 1970, impulsionado por uma visão de soberania energética num país que crescia a taxas aceleradas. “A justificativa era a expectativa de uma demanda energética crescente, num cenário de esgotamento do potencial hidrelétrico e insegurança em relação aos combustíveis fósseis [com as crises do petróleo]”, relembra Amilcar Guerreiro, executivo do setor elétrico e ex-diretor da Empresa de Pesquisa Energética, ligada ao Ministério de Minas e Energia.
Angra 3 foi concebida dentro de um acordo com a Alemanha, que previa a construção de oito usinas. Era para ser a segunda delas — mas, com o tempo, tornou-se um projeto isolado e problemático.
As obras começaram ainda na década de 1980, mas foram interrompidas sucessivamente. O apoio tecnológico alemão acabou oficialmente em 2004, quando a sa Framatome assumiu parte da assistência técnica. Entre retomadas e paralisações, Angra 3 virou uma obra fantasma. Em 2015, a Lava Jato travou o projeto mais uma vez. E mesmo após uma nova tentativa de retomada em 2022, a construção voltou a ser interrompida em abril de 2023, por disputa com a prefeitura de Angra dos Reis sobre compensações ambientais e licenciamento.
Até hoje, estima-se que o Brasil já tenha gastado cerca de R$ 12 bilhões (em valores de hoje) com Angra 3 — uma cifra que ilustra o tamanho do investimento em um projeto que ainda não gerou um único megawatt. O canteiro de obras está em “modo de espera”, consumindo R$ 220 milhões por ano apenas com segurança e manutenção – há quem fale que essas despesas podem chegar a R$ 1,2 bilhão ao ano.
“Cada ano de atraso representa: aumento no custo total do projeto; desvalorização de equipamentos e perda de conhecimento técnico; ocupação de capital e recursos públicos que poderiam ser aplicados em outras frentes”, ressalta Guimarães.
Estima-se que 65% da obra esteja concluída. O restante depende de uma decisão — que há anos não chega. Segundo estudo feito pelo BNDES, seriam necessários R$ 23 bilhões para terminar a usina, enquanto o custo para desmontá-la ficaria em R$ 21 bilhões. Colocando esses números assim, um do lado do outro, parece que o lógico é gastar um pouco a mais e concluir a usina, certo? De fato, mas a situação é um pouco mais complicada do que isso.
Em um artigo na Folha, o engenheiro e especialista no setor elétrico Jerson Kelman lembrou que obras de grande complexidade raramente respeitam previsões orçamentárias. No caso das usinas nucleares, o custo final costuma ser, em média, três vezes maior do que previsto inicialmente.
O grande debate
A favor: estabilidade, descarbonização e soberania
Quem defende a conclusão de Angra 3 tem uma lista de argumentos técnicos consistentes. O principal é o papel da energia nuclear como fornecedora de estabilidade para o sistema elétrico brasileiro. Trata-se de uma fonte firme, não intermitente. Ou seja, uma usina nuclear pode operar quase o tempo todo, complementando a crescente presença de fontes como a solar e a eólica, que variam conforme o clima.
“Não se trata de competir com solar ou eólica. São usos diferentes. A nuclear oferece estabilidade e proximidade dos centros consumidores. Comparar preço de energia como se fosse commodity é um erro técnico”, resumiu ao InvestNews um especialista com longa atuação no setor.
Em momentos de seca ou de baixa geração das fontes renováveis, usinas nucleares ajudam a evitar o acionamento das poluentes termelétricas. A localização de Angra 3, próxima aos grandes centros consumidores do Sudeste, ainda evita perdas em transmissão e facilita a retomada do sistema em caso de apagões. “É uma questão de estabilidade do sistema. E ela será cada vez mais crítica com a crescente pulverização da geração”, aponta Amilcar Guerreiro.
Além disso, há a contribuição ambiental. Durante sua operação, uma usina nuclear não emite gases de efeito estufa. Concluir Angra 3 pode ajudar o Brasil a cumprir metas climáticas e fornecer energia limpa em grande escala. Também fortalece a cadeia tecnológica brasileira no setor: o país detém uma das maiores reservas de urânio do mundo e domina etapas do ciclo do combustível — da mineração ao enriquecimento.
Soma-se a isso o argumento estratégico. Em um momento em que países desenvolvem pequenos reatores modulares (SMRs) e vislumbram novas gerações de usinas, completar Angra 3 pode evitar a perda da expertise acumulada e manter o Brasil no clube dos países com domínio da tecnologia nuclear.
Contra: custo, tecnologia e risco
Do outro lado, os críticos apontam o que consideram um anacronismo caro e arriscado. O projeto de Angra 3, concebido nos anos 1970, sofreu atualizações digitais, mas seu design básico é considerado ultraado frente aos padrões internacionais mais recentes. Há dúvidas sobre a capacidade de concluir a obra no orçamento previsto — entre R$ 20 bilhões e R$ 23 bilhões — e dentro do cronograma estimado, entre 6 e 8 anos.
A tarifa de energia seria uma das mais caras do país: R$ 653 por megawatt-hora (MWh), segundo um estudo do BNDES — muito acima das fontes eólica e solar, que giram em torno de R$ 180/MWh. Para grandes consumidores, especialmente os grupos empresariais e indústrias, esse custo é inaceitável. “Esses grupos pensam na conta do mês que vem, não na estabilidade do sistema”, afirma uma fonte com trânsito na Eletronuclear.
Há também quem questione o aumento do ivo ambiental: o Brasil ainda não tem um repositório definitivo para armazenar resíduos radioativos de alta atividade, como o combustível usado. Mesmo com protocolos de segurança avançados, parte da população e do setor ambiental teme os riscos de acidentes — agravados pela localização da usina em região sujeita a chuvas e deslizamentos. O plano de evacuação para a população vizinha também é considerado frágil.
A energia nuclear na matriz brasileira
Hoje, a energia nuclear representa cerca de 2% da geração elétrica nacional. A matriz é predominantemente renovável — 52,3% hídrica, 15,9% eólica, 8,4% solar (sem contar os painéis fotovoltaicos das casas e fazendas; só as usinas solares). Tudo isso dá 85,06% no total. Mas a estabilidade dessa matriz limpa está cada vez mais ameaçada pela intermitência das fontes novas.
É aí que entram as fontes de energia firme, caso da nuclear, das térmicas (gás natural, biomassa, carvão) e das hidrelétricas com reservatórios. Se entrar em operação, Angra 3 vai colocar 1,4 gigawatt à disposição do sistema – o equivalente a 10% da hidrelétrica de Itaipu.
A concorrência é grande — e nem sempre equilibrada. A construção de novas hidrelétricas de grande porte é pouco viável hoje, por conta do estorvo ambiental. As térmicas a gás, por outro lado, têm se beneficiado de “jabutis” legislativos inseridos na privatização da Eletrobras e em projetos como o marco legal das eólicas offshore, que obrigam a contratação de termelétricas em locais sem infraestrutura de gás. No caso do marco das eólicas, o jabuti termelétrico foi vetado pelo presidente Lula, mas o veto periga cair no Congresso.
Essas emendas aumentam os custos e distorcem o planejamento energético. “Esses lobbies distribuem térmicas a gás em todo o país por meio de jabutis em projetos que nada têm a ver com gás natural. São atores políticos muito poderosos”, diz uma fonte do setor.
Política e dinheiro: os verdadeiros imes
Financeiramente, o dilema é brutal. Como vimos, a usina já consumiu R$ 12 bilhões, e enterrá-la agora custaria quase o dobro disso, somando dívidas, multas e desvalorização de ativos. A Eletronuclear, estatal responsável pelo projeto, enfrenta dificuldades operacionais e financeiras.
Após a privatização da Eletrobras, foi criada uma holding pública para controlar Angra 3. Esse ponto, o da privatização da elétrica, é central. Até então, esperava-se que a empresa investisse na usina. Mas o governo Lula negociou desobrigá-la desse fardo em troca da indicação de conselheiros na empresa, que agora tem controle privado. “Foi como cravar uma estaca de prata no coração do vampiro”, diz uma fonte próxima às negociações. Com isso, a Eletronuclear ficou órfã de financiamento privado robusto. Hoje, a alternativa é encontrar um sócio nacional ou internacional — o que ninguém, até agora, se dispôs a ser.
Politicamente, o governo está dividido. O Ministério de Minas e Energia defende a conclusão da obra por motivos de segurança energética e planejamento de longo prazo. Já a área econômica, liderada pela Fazenda e pelo Planejamento, resiste diante do alto custo e da pressão tarifária. Enquanto isso, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), que é o órgão responsável por formular as diretrizes energéticas no Brasi, segue adiando uma definição.
No campo técnico, os desafios são grandes. Além da obsolescência parcial dos equipamentos, há o problema da perda de pessoal técnico qualificado — muitos dos quais aderiram a planos de demissão voluntária. Sem decisão, o canteiro continua incinerando suas centenas de milhões de reais. “A cada ano, vai ficando mais difícil e mais caro concluir a obra. Empurrar com a barriga só piora o cenário”, diz a mesma fonte.
A visão global: o mundo olha de novo para a energia nuclear
Apesar da desconfiança que persiste em alguns países, como a Alemanha, a energia nuclear vive um renascimento global.
A guerra na Ucrânia escancarou a dependência energética da Europa em relação ao gás russo, e reacendeu a busca por fontes firmes que não dependam de combustível estrangeiro. A França dobrou a aposta em seus reatores. A China lidera em número de novas usinas em construção. Os Estados Unidos, além de manterem o maior número de reatores, investem em usinas modulares (menores, para usos específicos, como acontece aqui com as PCHs – Pequenas Centrais Hidrelétricas). Eles também tecem parcerias com big techs.
A razão aí está na nova demanda. A ascensão da inteligência artificial impulsiona a instalação de data centers em escala global. São centros de processamento que exigem fornecimento constante, seguro e em larga escala. Nos EUA, a Microsoft propõe a reativação da usina nuclear Three Mile Island — símbolo do maior acidente atômico da história americana — para abastecer centros de dados.
O Brasil ainda não vive essa realidade no mesmo grau, mas a tendência é clara: com o aumento no número de data centers e carros elétricos, a demanda por energia firme tende a crescer. E nesse cenário, a nuclear pode ganhar estofo — se o país estiver pronto para isso.
O custo da não decisão
Angra 3 virou, como definiu o ministro Alexandre Silveira, um “mausoléu”. Mas também é um espelho. Reflete as hesitações do Brasil em decisões estratégicas, os conflitos entre planejamento técnico e interesses setoriais, e a incapacidade de lidar com projetos de longo prazo.
Concluir Angra 3 será caro, politicamente difícil e tecnicamente desafiador. Abandonar também custará muito — em dinheiro, imagem e capacidade industrial. Mas manter o canteiro parado indefinidamente não tem como ser a melhor escolha.
Porque no setor elétrico, a inércia custa caro. E a conta sempre chega.